Na luta pela legalização do aborto não retrocederemos!

Por Mulheres do PSOL

1 out 2021, 16:13 Tempo de leitura: 15 minutos, 3 segundos
Na luta pela legalização do aborto não retrocederemos!

Dia 28 de setembro é o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto, e diante das crescentes tentativas de retirada de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil acreditamos ser fundamental abordar a temática.

Entrevistamos Paula Kaufmann Sacchetto e Niege Pavani, que compõem a Executiva Nacional da Setorial Nacional de Mulheres do PSOL e são militantes da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto.

Paula e Niege discorreram a respeito do histórico da luta organizada pelas Mulheres do PSOL, dos avanços e retrocessos enfrentados diante do governo Bolsonaro e traçam perspectivas sobre a luta feminista em torno da pauta dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas que gestam no Brasil e na América-Latina.

1- A Setorial Nacional de Mulheres do PSOL tem um histórico de luta pelos direitos sexuais e reprodutivos. Como se dá essa construção no cotidiano? E em quais espaços?

Paula:  A pauta da legalização do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos é uma pauta histórica do movimento de mulheres não só no Brasil, mas no mundo. E acho que no Brasil é um tema muito presente, e que isso se dá não só aqui, mas na América Latina devido a uma forte influência fundamentalista religiosa. E isso faz com que seja um tema muito difícil da gente encarar. Historicamente, as mulheres do PSOL têm um papel importante pautando esse tema, colocando como uma de nossas bandeiras mais inegociáveis. E acredito que um passo importante dentro dessa luta foi a ADPF que o PSOL apresentou em 2017, junto com a ANIS, pela legalização do aborto, em que as Mulheres do PSOL tiveram um papel importante nessa iniciativa. No Brasil são poucos os partidos que encaram essa bandeira com prioridade como o PSOL faz.

Niege: Existe uma linha do tempo na história da Setorial, e ao longo dos anos essa bandeira foi se ajustando e tomando formas diferentes, mas ela sempre foi muito central dentro da luta das mulheres do PSOL. Até mesmo porque o movimento organizado de mulheres se iniciou antes mesmo da formação do partido como conhecemos hoje. A combinação da gente ter um país excessivamente conservador e uma cultura mais individualista, que não tende a uma organização coletiva nos dias de hoje, gera a possibilidade do PSOL ser atualmente a organização pública que mais disputa posição sobre o aborto, porque conseguimos aplicar o debate em todas as nossas plataformas eleitorais. E isso é muito significativo, porque a pauta do aborto é uma pauta muito polemica e antipopular no sentido do debate público aberto. 

2- Por que o PSOL acredita que o aborto deve ser legalizado no Brasil?

Niege – Existem muitas leituras a respeito da legalização do aborto, e eu não conheço nenhuma que seja equivocada. Algumas são mais afinadas com uma concepção socialista, em termos de sociedade e estruturas sociais, e outras no campo dos direitos individuais e por assim dizer, mais liberais. Acredito que o que sintetiza grande parte das organizações do PSOL em torno da pauta da legalização do aborto é que existem vários elementos, jurídicos, políticos e culturais, que revelam a ideia de que há uma hierarquização da prioridade da vida de um indivíduo sobre outro. De que mulheres são criaturas inferiores do ponto de vista social, e de que não há um reconhecimento de autonomia sobre essas vidas. A mulher está sempre classificada na relação de um outro, a mãe, a mulher, a esposa, sempre desprivilegiada enquanto sujeito autônomo. Além disso, controlar esses corpos é garantir que haverá a produção de mão de obra.  Não é à toa que os países mais pobres têm mais dificuldade de fazer a discussão da legalização do aborto, porque é preciso garantir que haverá gente para trabalhar. E é a partir de concepções capitalistas que se classifica quais territórios serão mais ou menos progressistas.

Paula – É importante dizer que existe um marco histórico de quando o corpo da mulher passou a ser um objeto religioso e econômico. A partir do momento em que existe também a concepção da igreja de que o corpo da mulher é sagrado, e isso combina com a lógica econômica de reprodução da mão de obra, esse debate se traveste de uma interdição moral, ferindo a autonomia das mulheres na prática. E esse é um debate importante em que o feminismo tem se aprofundado, o papel da mulher enquanto engrenagem principal dentro do capitalismo, e para a manutenção e reprodução social de uma maneira geral. É importante perceber que mesmo quando existiu uma mudança do papel econômico da mulher na produção capitalista, o trabalho reprodutivo nunca deixou de existir. Ao mesmo tempo em que é um debate mais amplo também, pois do ponto de vista da saúde pública, o aborto é uma das principais causas de morte materna no Brasil.

3- O PSOL tem algumas iniciativas no âmbito institucional para legalizar o aborto, a ADPF 442, proposta em conjunto com o Instituto Anis, e o PL 882/2015, do deputado Jean Wyllys (RJ). Como está a tramitação destas propostas?

Paula – A gente apresentou a ADPF lá em 2017, junto a ANIS, em que o argumento principal era de que seria inconstitucional obrigar uma mulher a seguir com uma gestação indesejada. E o marco mais importante desde então, foi o debate aberto que se estabeleceu na sociedade e dentro da institucionalidade política e jurídica, a partir da audiência pública no STF em 2018. Claro, que não vai ser somente pelas mãos do STF que a gente vai conquistar a legalização do aborto, vai ser preciso muita luta e muita organização do movimento feminista pra isso. Foi um dos momentos mais importantes da luta pela legalização no Brasil recentemente, porque foi um espaço em que a gente conseguiu reunir um grupo de especialistas, médicos, juristas e religiosos para fazer um debate franco tentando desvelar os argumentos morais. Mas não tivemos novas movimentações em torno da tramitação. E quanto ao PL do Jean, com certeza deve estar em alguma gaveta, porque estamos vivendo uma das composições mais conservadoras da Câmara dos últimos anos desde a época da ditadura, então é muito difícil isso conseguir avançar do ponto de vista do parlamento, mas de todo modo, essas iniciativas institucionais são importantes porque a gente coloca o partido enquanto defensor desse tema.

Niege – A ADPF abriu muitas fissuras e, há exemplo da Argentina, colocou luz sobre a questão desse debate que ocorre de maneira muito clara aqui no Brasil, que é o de que poucas organizações aceitam sair a público para defender essa agenda, e da ausência de nivelamento de prioridade dessa pauta. Além disso, existem diversas dinâmicas aqui no Brasil em comparação a países da América Latina que tornam esse debate mais complexo de ser feito. Aqui a gente tem duas grandes pautas na luta de mulheres que é a legalização do aborto e a violência contra a mulher. Então existe uma certa resistência que impede essa construção de uma força social que pudesse levar essa ADPF a plenário, pelo menos. A ADPF foi a primeira ação pública que pressionou não só a sociedade, mas o próprio movimento de mulheres acerca dessa pauta que estava represada.

4- O governo Bolsonaro e seus apoiadores escolheram como um dos alvos atacar os direitos das mulheres. Como isso acontece em relação aos direitos sexuais e reprodutivos?

Paula – Fizemos recentemente três anos do movimento #EleNão que foi uma demonstração muito potente da organização das mulheres, e que inclusive, transbordou para além do movimento feminista, tendo as mulheres como ponta de lança, ao mesmo tempo em que Bolsonaro ia se consolidando como alternativa dicotômica. Dito isso, o Bolsonarismo representa sim um retrocesso do ponto de vista dos direitos das mulheres, não só porque ele luta até o fim contra o avanço dos nossos direitos, mas porque também representa uma tentativa de avançar contra os direitos conquistados até aqui. E isso se evidencia de várias formas a partir de movimentações institucionais, o que exige a necessidade de ter um movimento feminista vigilante, e não só no contexto do governo Bolsonaro, mas contra o avanço do conservadorismo. Existem diversas demonstrações desse avanço, como o fechamento de postos de atendimento para o aborto legal, a repressão contra uma médica que desenvolveu o atendimento de aborto legal via telemedicina lá em MG, a exigência da autorização dos maridos para inserção do DIU por parte de alguns planos de saúde. Estamos retrocedendo décadas de luta das mulheres.      

Niege – O governo Bolsonaro faz parte de um alinhamento global internacional do neoliberalismo, que produziu fenômenos de extrema direita e conservadores, e que não existem só aqui no Brasil. Entre as características presentes nele estão a recuperação de concepções familiares super centradas, valores mais arcaicos, no sentido de recuperar algo de que antigamente era melhor, este é o grande slogan dessa onda aqui no Brasil, o de recuperar tempos. Então você tem estes ataques às mulheres no campo do legislativo, que elas [essas características] não são separadas disso, ataques aos direitos reprodutivos, uma tentativa de “legalizar” as práticas de dominação masculina com medidas para constranger notificações de estupro, burocratizar os procedimentos legais e jurídicos que possam dar causa favorável as mulheres seja em caso de estupro, de violência, mas também sobretudo em casos de abortamento. Isso acompanha uma tentativa de clandestinização da sexualidade e da identidade sexual de gênero das pessoas com esses PLs como o Escola sem partido. É uma disputa no campo ideológico para se buscar o retorno a um tempo que nunca existiu, para barrar uma deterioração de valores, como se os movimentos feministas e LGBT ameaçassem a soberania nacional.

5- Como vocês enxergam as recentes conquistas das mulheres latino-americanas dentro dessa pauta?

Paula – É um avanço muito fundamental que aconteceu sobretudo na última década, em especial nos últimos 5 anos.  A América Latina é uma das poucas regiões do mundo em que praticamente todos os países há uma criminalização total do aborto, com exceção de situações como as que são legais no Brasil. Ainda há alguns lugares do mundo com tentativas de retrocesso, como no Texas (EUA), na Polônia e em alguns países com governos mais conservadores. Aqui o Uruguai se tornou um símbolo na história recente como um dos primeiros países, e fica como um modelo porque demonstrou inclusive com dados, como a legalização do aborto é importante até para a redução do seu número. Depois disso tivemos a Argentina em 2020, o México no início deste mês com uma decisão judicial, e o Chile, ainda não concluso, mas com uma sinalização favorável, o que demonstra uma força do movimento feminista na América Latina.  Podemos ter alguns ensinamentos importantes a partir das mulheres argentinas e chilenas. De alguns anos pra cá houve uma centralidade do movimento na luta pela legalização do aborto na Argentina, o que não foi necessariamente contraditório com o desenvolvimento de outras pautas como o movimento #NiUnaMenos, por conta da onda de casos de feminicídio. Isso não se deu de forma espontânea, há mais de uma década elas organizam o Encontro Nacional do Movimento Feminista, com plenárias em diversas cidades, milhares de mulheres e muita disputa política. Além disso, houve a criação da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto, que criou os “pañuelos” [lenços verdes] que tinha grupos de apoio em cidades, regionais, em um movimento muito enraizado.  Foi um processo contínuo, de muitos anos e não apenas superestrutural. Além disso, no Chile houve o protagonismo das mulheres em diversas outras lutas no país, inclusive com a realização de greves feministas.

Niege – É importante também refletir sobre como estes avanços têm se dado, já que há países no mundo onde o aborto é legal, mas não é gratuito, se continua tendo uma série de problemas de acesso e mortes por aborto ilegal e irregular por conta da dificuldade do acesso econômico. A gente tem avançado aqui nos últimos anos por serem serviços oferecidos dentro dos marcos do serviço público de saúde, ainda que não sejam países que tenham sistemas universais de saúde, como é o caso do Brasil, com o SUS.  Quanto a maneira como isso tem se dado, há muitas diferenças econômicas, culturais e sociais nos países da América Latina, e o Brasil talvez seja o mais diferente de todos, então como foi articulado nestes [países] pode ser mais demorado aqui. Eu acho que há demandas que estão postas para o médio prazo, como por exemplo, reestabelecer o Encontro Nacional Feminista no Brasil, que havíamos começado e paramos por conta da pandemia, mas que apresentava já diversas questões e problemas que precisavam ser dialogados. Ainda não temos aqui duas coisas bem assentadas, que são o espaço-debate, o fórum, e a agenda deste debate. Existir um fórum ajuda a definir a agenda.  Estes países da América Latina que tiveram a legalização passaram por processos como estes, com raríssimas exceções. O México, tem características mais particulares, pois vem de uma tradição de organização de base mais profunda que é o movimento Zapatista, que por mais que tenha sido reinventado, criado mecanismos menos volumosos de organização, sua estrutura de organização do movimento rural mexicano, faz com que você tenha uma incidência ideológica mais matriarcal sobre a política.  É difícil compreender qual o élan entre essas várias experiências, mas o México talvez tenha coisas que nos interessam mais para extrair ensinamentos que sejam mais adaptáveis para o Brasil. 

6- Qual o horizonte que vocês acreditam para a luta pela legalização do aborto no Brasil?

Niege – Como fomos atravessadas por um governo com características muito de extrema direita, é natural que tenhamos um momento de recessão da articulação. Isso não quer dizer que a gente não esteja fazendo coisas, fizemos muito nos últimos anos. Há dificuldade com as questões propositivas, nos reunimos, mas não há um cronograma de ofensiva, estamos na defensiva. Essa capacidade de não sermos ofensivas está relacionada a uma desarticulação do movimento. No Brasil hoje a gente tem 2 movimentos que conseguem construir caldo social para pressionar pelas suas agendas prioritárias, que é o movimento indígena e o movimento negro. Isso acontece porque nos últimos anos esses espaços conseguiram produzir saídas de articulação que pudessem ser grandes frentes de atuação, como a Coalizão Negra [Por Direitos] e o movimento indigenista, em que há uma relação com algumas figuras do movimento indígena participarem de espaços institucionais ou partidários. Ainda não existe este tipo de avaliação no conjunto do movimento feminista de que este tipo de construção – uma APIB ou uma Coalização – devem ser feitos no movimento feminista. Isso é na minha avaliação a grande tarefa histórica dos próximos anos. A gente tem tido algumas experiências que anunciam essa possibilidade, que foi a articulação nacional do 8 de março deste ano, que foi precária, mas interessante. Então eu acho que a gente precisava até de uma espécie de caderno guia de quais são as diretrizes do movimento, e isso necessariamente passa por um processo de credenciamento de direções. E o nosso desafio é a gente conseguir saber se o PSOL tem condições de participar disso, e dessa vez enquanto força social, se produzirá lideranças orgânicas que sejam ao mesmo tempo partidárias e de movimentos. 

Paula – É parte da gente enquanto movimento estas novas formas de organização que essas meninas mais jovens dessa nova geração do feminismo têm apresentado, de auto-organização na base do feminismo, na construção de assembleias feministas, organização de lutas e campanhas de solidariedade. Acho que é importante também apostar nesses espaços mais coletivos, mais amplos, abertos, para que daí também surjam esses novos sujeitos coletivos de mulheres. Precisamos também, ampliar as noções de direito reprodutivo, a necessidade de enxergar a questão racial com muita centralidade, pelo que é a nossa composição social, nossa história. Enxergar um conceito que muitas vezes o movimento de mulheres negras traz sobre o debate do aborto, da noção de justiça reprodutiva, mais do que só a necessidade da legalização do aborto. A luta pela legalização do aborto é a luta pelo nosso direito de escolha, e se escolhermos o direito de ser mães. É preciso colocar a perspectiva do movimento de mulheres negras, do genocídio da população negra, em que o estado precisa garantir que o seu filho viva. Precisamos ampliar ainda mais essa noção da necessidade de que existam políticas públicas para a primeira infância, políticas públicas para as mulheres mães, que exista apoio do estado.